Cumprindo concorrida temporada no Teatro FAAP, a peça Pterodátilos tem sido requisitada pelo público muito mais pela presença de Marco Nanini no elenco do que pela história em si. O delicioso texto do norte americano Nicky Silver fora deixado em segundo plano pelos desavisados que entravam na FAAP em busca de encontrar em Nanini uma espécie de personificação de sua personagem Lineu, do seriado A Grande Família. Talvez essa busca pela personagem televisiva tenha sido uma das frustrações de grande parte do público ao sair da FAAP comentando “que peça estranha”, “não entendi nada”, “esperava rir mais”, “o Lineu estava tão estranho”. Quem procurar por Lineu não encontrará. Quem procurar por Nanini também não o encontrará. Apenas o que se vê em Pterodátilos é uma tragicomédia sobre uma família de alta classe que se vê entrando em extinção com a volta do primogênito a casa. O pai, presidente de um banco, a filha prestes a casar e totalmente desligada de sua realidade, a mãe alcoólatra e sem nenhuma noção de seus atos e o então noivo da filha, submisso e perdido em seus desejos. Nada suporta a volta do filho homossexual contaminado pelo vírus do HIV que decide escavar as terras da casa em busca de fósseis de dinossauros e acaba por encontrar um pterodátilo. Nada na peça faz sentido a principio e aí está o grande trunfo do texto de Nicky Silver. A história em si não deveria ter sentido, tanto quanto a convivência daquela família não tem. Nada na família está de pé, nada faz sentido, não há ali linha que separe a realidade da insanidade emocional, todas as personagens estão entregues a suas emoções mais sombrias, e é exatamente aí que os atores entram em prova e, como era de se esperar, passam com louvor. Fellipe Abib interpreta Tom, noivo da filha mais nova da família. O ator construiu em sua personagem a densidade e a comicidade exatas a ponto de cativar o público logo quando entra vestida de empregada em cena, a pedido de sua então futura sogra. Tudo muda quando Tom se apaixona por Todd, filho mais velho da casa e homossexual portador do vírus do HIV e interpretado por Álamo Facó num misto de tristeza, paixão e sensualidade. A dupla protagoniza momentos de terna tensão sexual que convencem e emocionam. Emma, a filha mais nova interpretada por Marco Nanini é também um grande achado, talvez a melhor personagem no texto de Nicky. Nanini criou uma garota reprimida e regida por suas sinas, medos e manias que, alcoólatra e grávida vive em discussão com a mãe tentando provar sua existência. Nanini mostra tamanha maestria em cena que realmente chegamos a acreditar que há uma atriz interpretando aquele papel, não apenas um homem (tra)vestido de mulher. Nanini também dá vida ao patriarca da família, Artur, presidente de um banco que tenta a todo custo levar sua família nas costas, tentando aceitar as escolhas do filho, reprimindo seus desejos de abusar de sua filha e tentando aturar sua esposa. Nanini funciona melhor como Emma, mas também convence na pele do banqueiro que, mais tarde, perde o cargo da presidência e entra num estado de letargia e depressão contínuas, tentando inclusive assassinar seu filho Todd num ato de desespero para suprir seus desejos, acaba expulso pela esposa, Grace, e aí está o grande destaque da peça. Mariana Lima interpreta a dona de casa alcoólatra e compulsiva por compras, Grace. A atriz mostra estar em sua melhor forma em passando de momentos cômicos a trágicos num piscar de olhos. O amor platônico que alimenta por seu filho Todd faz com que a notícia de sua doença torne-se apenas mais uma ocasião para festa, após o casamento de sua irmã. “Você quer caixão aberto?” pergunta com euforia Grace a seu filho, e Mariana explora todas as nuances e riquezas desta personagem. O verdadeiro destaque da peça é Mariana.
O cenário é elemento a parte, que funciona a favor da peça. A princípio simples (um chão de madeira erguido por uma plataforma) vai se transformando em ponto essencial para o espetáculo, visto que a medida em que a família desmorona (seja com a morte de Grace e seu filho – ela então grávida – seja pela morte de Tom, seja pela partida de Artur), o chão vai sendo completamente destruído, até que sobrem apenas resquícios. Com a morte de Grace (numa cena impactante dela sendo servida pelo filho com conhaque e já dando seus últimos suspiros), a peça é encerrada com Todd e seu discurso politicamente irreconhecível (correto ou não, isso já não importa). É essa a graça do texto de Nicky Silver: a falta de graça.
Pterodátilos não é uma peça fácil, muito antes pelo contrário, é uma peça de difícil acesso e digestão, mas é uma obra que merece a atenção do público, desde que este esteja preparado para ver aquilo que talvez queiram esquecer.
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