terça-feira, 7 de junho de 2011

Deus da Carnificína: risco dos valores na comédia


“O teatro em sua forma mais nobre. Texto da francesa Yasmina Reza ganha montagem excepcional”. É exatamente isso o que está escrito num grande cartaz que enfeita o hall do Teatro Vivo em São Paulo. A crítica de Bárbara Heliodora (a crítica de teatro mais importante – e temida – do Rio de Janeiro, quisá do Brasil) para o jornal O Globo já deixa o espectador havido para assistir uma das melhores comédias em cartaz nos palcos paulistanos. Deus da Carnificina cumpre concorrida temporada no Teatro Vivo após uma longa e vitoriosa temporada no Rio de Janeiro, no Teatro Maison de France. Tive a oportunidade de conferir a peça no sábado, 04, e tive de esperar em torno de 3 dias para poder escrever sobre, tamanho o medo de ser injusto ou leviano com as palavras. Três dias me foram o suficiente para perceber que eu tinha a razão quando pensei assim que saí do teatro: essa é a melhor comédia que já vi em São Paulo! – e olha que não foram poucas (só para constar: Trair e Coçar, é só Começar, Os 39 Degraus, Toc Toc dentre outras). Deus da Carnificina é uma comédia que coloca em risco muitos valores humanos: o do bom senso, a classe e a educação e o familiar. Trata de dois casais que se encontram numa reunião para tentarem resolver um problema que chega até a ser normal na vida dos pais: uma briga dos filhos. O filho de um dos casais acertou o filho do outro com um pedaço de madeira, “desfigurando” o garoto, como sentenciou Deborah Evelyn que dá vida a uma deliciosa Veronica: mãe zelosa, mulher de bons costumes e que preza pela moral, classe e educação. Bem parecida com sua personagem na novela das 21h, mas ainda assim muito diferente. A comédia não tem um único ritmo, ela vai se intensificando à medida que a história se desenrola e é essa uma das magias do texto de Yasmina Reza (a qual acaba de ganhar um admirador) muito bem traduzido por Eloísa Ribeiro (citando Bárbara Heliodora). A ideia de unir os dois casais com um tema que, a princípio, parece desinteressante acaba por ser o grande trunfo: como um tema desinteressante pode culminar numa das grandes loucuras atemporais de todos os séculos. Os quatro atores (Deborah Evelyn, Júlia Lemmertz, Paulo Betti e Orã Figueiredo) criam em cena um equilíbrio denso e ao mesmo tempo leve, em nenhum momento você se cansa de ouvir as histórias ou de ver as cenas. Júlia Lemmertz está, sem dúvida, em sua melhor forma dando vida à mãe do agressor mirim; Paulo Betti conseguiu fazer de uma personagem a princípio desinteressante um grande achado; Deborah Evelyn usa de toda a sua dramaticidade já mais que comprovada para criar uma personagem meio histérica meio equilibrada, uma delícia vê-la em cena; Mas o grande destaque é de Orã Figueiredo, que toma pra si as grandes piadas da peça e faz jus a elas, numa interpretação que passa do jocoso-cômico ao dramático em questão de segundos. É um prazer vê-los, principalmente quando estão em plena comunhão com o cenário. Discordando de Bárbara Heliodora que achou a introdução do espetáculo longa e sem sentido, achei-a talvez não necessária, mas aceitável, e mais: explicável. Enquanto rola a canção de introdução, Deborah e Orã arrumam o cenário (que a princípio parece sujo demais, muito em cena, mera impressão), arrumam a casa para receber os pais do agressor de seu pequeno filho. Um cenário nada simples, mas nada escrachado, puramente necessário (o jogo das cadeiras, os livros, as flores, o vaso, tudo!). E para finalizar algo que merece ser citado: a espontaneidade dos atores. A prova viva de que havia prazer em estar em cena era vê-los segurando as risadas quando Deborah jogava algo em Orã, ou então quando nenhum dos quatro conseguiu segurar o riso levando a plateia abaixo em espontâneos aplausos. Uma delícia.

Enfim, Deus da Carnificina merece ser visto e revisto (meu ingresso para a próxima vez já está garantido) porque o prazer de rir com essa peça (inteligentíssima, sem usar de clichês e apostando em piadas imprevisíveis) nunca é demais.

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